Todas as canções me denunciam - cartas para os CAMINHOS SELVAGENS de Catto.
O processo de escrita deste texto está sendo —e continuará sendo — como eu acredito que deva ser: no surto, como dizemos. No âmago, no ódio, no amor notesãonoímpetonoespaçoentrecadarespiro.
Lançado no dia 15 de maio de 2025, sob a lua com Ras Alhague, o Sol quase encontrando Algol, e, claro, com a vênus em seu local de exílio, Áries, queimando a pele como quem apaga cigarro no próprio corpo. Assim, uma temática se evidencia na aura do álbum: veneno. A peçonha e a sua manutenção.
Após a primeira vez ouvindo o álbum de cabo a rabo, o ímpeto: preciso saber o Perfil do Destino que fazem parte das 8 músicas autorais que fazem parte dos Caminhos Selvagens de Catto.
Aviso: não conheço a Catto. Tampouco conheço seu Destino, o que eu proponho aqui é uma leitura simbólica a partir das impressões do álbum —que não necessariamente é uma autobiografia, mas que é carregado de uma intimidade que acredito que tenha, sim, muito da própria Catto ali. As cartas aqui presentes são para o álbum, e falam da pluralidade e profundidade dele, e apenas dele.

Quem vai pagar pra ver o circo incendiado? Vai beber do leite derramado? […] Só nos resta recolher os cacos e sobreviver. Quem diria que o fim desse mundo era eu e você? —
LEITE DERRAMADO
Quando puxei as cartas, não contive o grito ao sair a Torre como a representante da Natureza do álbum de Catto. Quando faço o perfil do destino a clientes, comento que a natureza é uma série de instrumentos que a vida nos dá —no caso do álbum, é a destruição quem dá o tom. De fato, todas as cartas do Perfil do Destino do álbum falam, em alguma instância, do corte e da ruptura (até o Diabo!), do movimento e do seguir em frente, mas juntando os cacos, carregando as feridas, assumindo o sangue que jorra das veias.
Não tem nada mais literário, mais dramático e catártico que uma Torre na natureza: não há dor e prazer que não serão sentidos em toda a sua intensidade. Catto explode em sinceridade, em dor, tesão, amor e ódio. Existe uma crueza e uma falta de filtro em todas as canções —e que dá já a primeira impressão no título da primeira música: EU NÃO APRENDI A PERDOAR. Catto traz, ao mesmo tempo, uma força e potência típicas de sua arte na sua voz, e um cansaço em suas palavras —uma espécie de transparência de quem admite a derrota, de quem percebe que jamais conseguirá ser mais forte do que já é, de que não resta nada além de aceitação de quem se é, apesar da vontade de morrer e de “esquecer do sabor dessa neblina em minha boca”.
“Vendo o mundo desabar. Agora é tarde demais”, canta Catto, na certeza de que as coisas seguirão seu rumo, sua natureza. O perdão não é assunto da Torre, que entende que há coisas que não podem ser sustentadas —e aí entra o paradoxo da verdade, da sinceridade que, ao mesmo tempo que nos liberta, nos enche de machucados. Não tem nada mais doloroso do que admitir para si os próprios pontos fracos.
No entanto, o perdão e a sinceridade tranquila são assuntos da Estrela —o por que nasci deste álbum —: se a sua natureza é a verdade crua, cansada e até mesmo destrutiva que existe dentro de nós, é a Estrela o trajeto cruzado por Caminhos Selvagens. Junto da Torre, a Estrela permite o devido catarse e integração com o próprio destino. Se a descoberta de que não podemos ser ninguém além de quem somos é, em um primeiro instante (eu, por exemplo, jamais me conforto que não sou a Madonna), uma dor, após nosso momento de birra, chega a integração.
Já que não me resta nada além de ser eu mesma, que eu seja com a totalidade que carrego, que eu seja eu com todas as possibilidades que eu carrego dentro de mim: então tudo que faz parte de nós, todas as nossas incoerências e inconsistências, torna-se beleza. E é assim que surgem faixas como EU TE AMO. Cheia de metáforas, a cantora admite a efemeridade das coisas, o próprio desapego e dá um dos adeus mais bonitos de todo o álbum.
A Justiça como a vocação mostra o primeiro lado mais cruel do álbum. A vocação é a maneira como os instrumentos são usados, ou seja, se a Torre são os instrumentos presentes no álbum —a ruptura, o drama —, esses instrumentos surgem com a precisão e a frieza da Justiça. Novamente, é a verdade e o intimismo que gritam aqui. É como se a cantora nos convidasse a tocar em feridas gélidas. Assim, a crueldade não é nada mais que a justa medida diante das verdades cruas que fazem de nós quem somos.
Existe um detalhe importante no Perfil do Destino deste álbum: o Diabo está em todas as frestas. É apenas natural que, em um momento em que mergulhamos em todas as nossas feridas, seja as que causaram em nós como as que causamos nos outros, que a presença de tudo que é corrupto, mal, mas também intenso, tesudo, provocador, aparecerá. Nessa Justiça, o Diabo encontra o seu reflexo ao contrário. Se na Justiça encontramos toda a retidão e a rigidez de quem tem uma noção muito clara dos próprios instrumentos, o Diabo é o lembrete de que manter a postura em perfeita posição por muito tempo vai só causar dor e desconforto. É o lembrete de que não há verdade absoluta, de que toda ação, todo julgamento, também carregará a sua parcela de dor.
A Justiça não tem problema nenhum em dar adeus às coisas que não lhe servem mais. O Diabo, no entanto, quer viver cada vez mais, e o sofrimento, a dor, o tesão, tudo isso é combustível. Não é à toa que o Diabo segura a sua espada pela lâmina —provocando angústias na Justiça, que quer fazer tudo seguindo as normas. Ele toca a guitarra até os dedos sangrarem, não se permite parar enquanto há suco de vida e de morte a ser espremido. É a vingança de cantar a vida que habita em caminhos selvagens, a provocação diante de tudo que tenta nos colocar em um roteiro reto, limpo, asséptico.
O Louco e o Carro são uma cena engraçada na minha cabeça. Lembro de, na minha adolescência, estar com uma amiga que estava sofrendo muito por causa de sua ex. Estávamos no carro dela indo para uma festa em outra cidade, com um álbum de sertanejo no último volume, e acelerando a mais de 140km/h. Foi um dos momentos em que mais me sentia vivo e prestes a morrer. Inimigos do fim, esses dois arcanos entendem que a experiência sonora desse álbum deve ser intensa. Não acho que quem escolha ouvir uma música apenas, e depois siga o dia, terá a mesma sensação catártica e devastante de quem se joga totalmente ao álbum.
O Louco, como destino, é a referência à própria natureza intrínseca do álbum. Convidando a Torre e o Diabo para dançar, enche as taças e celebra toda beleza da Estrela, a pureza da Justiça, e todo o pus e toda ferida aberta. Eu só quero arrasar e ser feliz / Na segunda-feira meus pecados serão perdoados diz Catto em 1001 NOITES IS OVER, que é um dos pontos mais energéticos do álbum, quando entendemos que podemos dançar com os pés sangrando. Junto dele, o Carro é a Cruz de Caminhos Selvagens. O que este álbum arrasta? A ânsia de andar pra frente. É o momento em que cansamos de só elaborar, de fermentar aquilo que está dentro de nós. As feridas sempre darão nos servirão de matéria-prima, é preciso aprender a não ficar somente na observação paciente delas. Aliás, paciência é tudo que não existe aqui. E de fato, não é o momento de ter paciência —existem elaborações que vêm do ato de cuspir pra fora, de botar a boca no trombone, de agir sem pensar.
Esse é, afinal, o perfil do destino dessa obra magistral: a verdade que nos impulsiona, que nos prende e nos acorrenta. Os momentos em que não há nada além de nós, em que só podemos seguir a própria natureza e fazer cagada mesmo. Mas também é a consciência e o ato de entrar em paz com o fato de que depois recolheremos os cacos. É assim que surge a integração com o próprio destino, coisa bonita demais. É um álbum inteiro, de uma artista inteira, que demonstra aceitar —e sofrer também, porque sempre há sofrimento— a própria inteireza. E que bom, em um mundo em que cada vez menos pessoas conseguem ser inteiras, conseguem ser o que são, esse tipo de arte é uma luz na escuridão. Viva a honestidade, viva os Caminhos Selvagens.
Pra quem não sabe, o Perfil do Destino é uma tiragem que tem como propósito o desvelar de algumas facetas do Destino e, para tal, possui uma regra máxima: deve ser feito uma vez na vida.
Quando falo isso, porém, ressalto: não quer dizer que você poderá fazer esta leitura somente uma vez, mas que as cartas sorteadas, uma vez reveladas, serão eternas. Da mesma forma que ocorre com outros símbolos, alguns arcanos poderão levar anos para que façam sentido em sua vida, pois pode ser que eles ainda não tenham sido "ativados" na prática.
É uma das tiragens mais incríveis que já fiz, e que costuma ter feedbacks muito legais. Não é a primeira vez que faço isso para um álbum, já fiz o Perfil do Destino do álbum Letrux em Noite de Climão, da Letrux (dã) e Todo Mundo Vai Mudar, da banda Dingo, uma das minhas preferidas aqui de Poa. Mas, infelizmente, esses textos ficavam no meu antigo site, e deu merda e perdi tudo (valeu, Uol).
Enfim, OUÇAM A CATTO.