Orlando, o Cavaleiro das copas
Um cavaleiro que carrega um coração no lugar de uma espada luta com amor. Seus golpes são beijos, as investidas são aconchegos e o clima é sempre úmido.
Não há, em minha opinião, quem melhor represente o aspecto exagerado do Cavaleiro de Copas do que Orlando (por vezes traduzido como Rolando), personagem com muita influência na matéria de França[1] das canções de gesta e dos romances de cavalaria tardios. Sobrinho de Carlos Magno, ganhou destaque na Itália, onde virou o maior símbolo do cavaleiro ideal. Orlando é o personagem principal dos poemas épicos da cidade de Ferrara, que se tornou conhecida pelo gênero (cuja forma foi resgatada por Camões em seu “Lusíadas”) com três obras: “Orlando Innamorato”, de Matteo Maria Boiardo; “Gerusalemme Liberata”, de Torquato Tasso; e “Orlando Furioso”, de Ludovico Ariosto. São poemas escritos em oitavas – estrofes com oito versos decassílabos no esquema ABABABCC[2] –, uma forma de importância grande para o tema por permitir discursos mais longos e a alternância entre tons líricos e aqueles mais informais (CALVINO, p. 23).
Orlando se apaixona, e isso é o ponto mais importante de sua história. Sua amada é Angélica, princesa de Cataio que, chegando à corte de Carlos Magno, oferece a mão para o cavaleiro que derrotar seu irmão Argalia em torneio. Argalia é derrotado pelo cavaleiro Ferraú, mas Angélica foge para uma floresta, onde bebe da fonte do amor com um simples soldado, Medoro. Ela é, então, perseguida por diversos guerreiros, entre os quais está Orlando. Em “Orlando Innamorato”, obra inacabada, vemos as diversas lutas e aventuras que o amor por Angélica traz para a vida do cavaleiro. De fato, Orlando, que é o melhor cavaleiro cristão de todos os tempos, o mais justo e ético, corajoso e ousado, agora não é nada mais do que apaixonado.
1.
Signori e cavallier che ve adunati
Per odir cose dilettose e nove,
Stati attenti e quïeti, ed ascoltati
La bella istoria che ‘l mio canto muove;
E vedereti i gesti smisurati,
L’alta fatica e le mirabil prove
Che fece il franco Orlando per amore
Nel tempo del re Carlo imperatore.
2.
Non vi par già, signor, meraviglioso
Odir cantar de Orlando inamorato,
Ché qualunche nel mondo è più orgoglioso,
È da Amor vinto, al tutto subiugato;
Né forte braccio, né ardire animoso,
Né scudo o maglia, né brando affilato,
Né altra possanza può mai far diffesa,
Che al fin non sia da Amor battuta e presa.
1.
Senhores e cavaleiros aqui reunidos
Para ouvir coisas agradáveis e nunca antes ouvidas
Estejam atentos e quietos, e ouçam
A bela história que cabe a mim cantar
E vejam esta gesta extraordinária
A forte dificuldade e os acontecimentos maravilhosos
Que o valoroso Orlando passou por amor
No tempo do rei Carlos Imperador.
2.
Mas não parece, senhores, surpreendente
Ouvir canções sobre Orlando apaixonado?
Porque até mesmo aquele que é o mais orgulhoso do mundo
É vencido e subjugado pelo amor
Nem o braço forte nem o ardor indomável,
Nem o escudo nem a malha, nem a espada afiada
Nem uma outra força pode resistir
Que, por fim, não seja vencida e feita prisioneira do Amor. [3]
Duas coisas, em Orlando, são interessantes para exemplificar o Cavaleiro de Copas. A primeira é que o amor alimenta suas ações. “L’alta fatica e le mirabil prove”, as coisas que são feitas por amor são tão extraordinárias que podem preencher os maios fantasiosos livros. Afinal, um cavaleiro que carrega um coração no lugar de uma espada luta com amor. Seus golpes são beijos, as investidas são aconchegos e o clima é sempre úmido.
O cavaleiro e a amada, o herói em nome do amor, este é o motivo romântico mais primário e imutável que nasce e sempre nascerá em toda parte. É a transformação mais imediata do impulso sensual em uma abnegação ética ou quase ética. Ele nasce diretamente da necessidade de demonstrar a própria coragem para a mulher amada, de correr perigos e ser forte, de sofrer e sangrar — uma aspiração que todo jovem de dezesseis anos conhece. Expressar e satisfazer esse desejo, algo que parece inalcançável, é substituído e elevado pelo ato heroico praticado por amor. (HUIZINGA, p. 145)
Então, tal qual Orlando, os românticos vão à guerra pelo amor. Viajam quilômetros e quilômetros, compõem as mais bregas cartas e canções, fazem arte e passam pelas mais variadas humilhações. Perdem o senso de si, renunciam ao orgulho e à identidade, apanham e choram, riem e se descabelam. Mas, acima de tudo, amam.
Tendo um coração no lugar de uma espada, a verdade é o seu maior ataque. Nada nos fragiliza mais do que a possibilidade de receber o amor. O Cavaleiro de Copas não mente, e sente, ou melhor, pulsa cada uma de suas palavras. Não de forma pensada, mas também longe de ser impulsivo, tudo que vem dele é sentido, vivo. Por isso mesmo, é ao mostrar as próprias inseguranças e esperanças que ele nos conquista, nos encanta. Não há Copas sem encantamento, sem a magia que só existe ao deixarmos toda a lógica de lado. Por isso somos tão envolvidos pelas histórias de amores proibidos, que ocupam um destaque na literatura desde sempre. Para o Cavaleiro de Copas, não há obstáculo – amante e objeto de amor se encontram, sempre. Mesmo que não haja correspondência, que não haja encontro, a flecha do cupido sempre acerta.
Mas é necessário falar do outro lado de Orlando, do outro lado do Cavaleiro de Copas e, de certa maneira, de Copas num geral: a primeira coisa é que o amor não é relação. As flechas do cupido são certeiras, é verdade, mas há pessoas que não aceitam nosso amor, que não precisam do nosso amor, há casos e casos. É o caso de Angélica, que nunca quis Orlando e se casou com Medoro em um bosque. O bosque, a floresta, em literatura, especialmente na medieval, é sempre um símbolo a chamar atenção. Para Angélica e Medoro, é o bosque do amor, o locus amoenus, lugar encantador, onde só reinam coisas boas.
Copas não é só o amor, mas a sensação. Felicidade, prazer, alegria, conforto, nada disso é o naipe de Copas, mas sim a sensação dessas coisas. Por isso mesmo que este naipe está intrinsicamente ligado aos entorpecentes, à embriaguez e ao envenenamento. O exagero daquilo que nos traz prazer leva à ressaca, como podemos ver claramente na sequência do três e quatro de copas da escola inglesa.
Se as ações são o que caracterizam os cavaleiros, então eles precisam estar sempre apaixonados, ou melhor, ter sempre a sensação de apaixonamento. Daí surge o exagero do amor, ou, melhor, a comédia do amor, como visto em Tomas, personagem do inesquecível “Insustentável Leveza do Ser”.
A sensualidade é a mobilização máxima dos sentidos: observa-se o outro intensamente, procurando captar seus menores ruídos. O grito de Tereza, ao contrário, queria atordoar os sentidos para impedi-los de ver e de ouvir. O que urrava nela era o idealismo ingênuo de seu amor, que queria abolir todas as contradições, abolir a dualidade entre o corpo e a alma, e talvez até abolir o tempo.
De repente, pareceu-lhe evidente que não sobreviveria à morte dela. Deitou-se ao seu lado para morrer com ela. Movido por essa visão, enfiou o rosto no travesseiro, junto ao dela, e assim ficou por muito tempo.
Agora, Tomas está de pé à janela e relembra este instante. O que se revelava assim, senão o amor?
Mas seria amor? Estava convencido de que queria morrer ao lado dela, e esse sentimento era claramente exagerado: ele a estava vendo apenas uma segunda vez! Não seria mais a reação histérica de um homem que, compreendendo em seu foro íntimo a inaptidão para o amor, começa a representar para si próprio a comédia do amor? (KUNDERA, p. 13)
Um cavaleiro sem missão, essa é outra forma de enxergarmos o Cavaleiro de Copas. Orlando, agora apaixonado por uma princesa oriental, abandona a causa cristã. Muda completamente o rumo, vagando eternamente à escuta do coração. Mas sabemos que o coração tem um ritmo próprio, que pode ser completamente diferente da vida. A sensação de apaixonamento leva à performance do amor. Para sentir o amor, nos preenchemos com rituais, anéis mágicos, votos à luz da lua, idiomas íntimos, a carne, a saliva e os olhos que pegam fogo.
Então surge o lado mais perigoso e complexo desse cavaleiro: ser proficiente no amor não nos torna aptos a ter uma relação. As relações não dependem do amor, são muito mais complexas do que isso. Orlando jamais entenderia isso. Há, sim, obstáculos e proibições e há a vida e há as pessoas e tudo isso é mais importante para uma relação do que o amor. E chamamos de boy lixo aqueles que não conseguem trazer para si nada além do cavaleiro de Copas, pois sabemos que alguém que vive somente um naipe, um lado, uma maneira de lidar com as coisas, no fundo, não tem preparo para um envolvimento maior. Os cavaleiros de copas/boy lixo estão sempre amando e estão sempre sendo verdadeiros, o que nos causa mais dor e confusão. Eles nos amam, é verdade. Então nos dizem: vou dedicar todas as minhas canções a você, para sempre. Vou te amar sempre, com a mesma intensidade. Vou subir à lua e pegá-la para você. E não, nem todas as canções serão para nós, nada é para sempre, ninguém conseguirá nos dar a lua. Mas o Cavaleiro de Copas não está mentindo, pois ele está sentindo tudo o que diz. E aí surge a frustração e a dor.
Então surge o momento mais crucial e impactante: a paixão de Orlando o enlouquece. Toda a literatura romântica, especialmente a medieval, nos avisa sobre os perigos do amor. Dante, Petrarca, Boiardo, Ariosto, todos os autores nos falam: o amor nos distancia de quem somos. Nos entregamos tanto ao sentimento que fugimos de nossa estrada. Claro, no caso da literatura medieval, isso geralmente vem acompanhado do tom moralista que a cultura cristã sempre impôs: o problema de Orlando foi se apaixonar por uma pagã, afinal.
Voltemos ao bosque, o lugar onde Angélica e Medoro se casam e encontram o amor. Naquele espaço, também se encontrou, posteriormente, Orlando, agora um invasor. O cavaleiro chega ao bosque e vê que nos troncos de árvore há o nome de Angélica gravado, com diversos sinais de amor em volto. Junto do nome da princesa, está escrito “Medoro”.
Calvino, em seu “Castelo dos Destinos Cruzados”, ao recontar a história de Orlando, mostra como o bosque avisou ao cavaleiro que ele não pertencia àquele lugar:
Vimos a floresta entreabrir-se a contragosto ante o avançar do campeão, as agulhas dos abetos se fazerem hirtas como os acúleos dos ouriços, os carvalhos enfunarem o tórax musculoso de seus troncos, as faias arrancarem as raízes do solo para lhe constranger o passo. Todo o bosque parecia dizer-lhe:
— Não entres! Por que abandonas os metálicos campos de guerra, reino do descontínuo e do distinto, as congeniais carnificinas nas quais excele o teu talento para tudo decompor e destruir, e te aventuras na verde natura mucilaginosa, nos espirais da continuidade viva? O bosque do amor não é lugar para ti, Orlando! Estás seguindo um inimigo contra as insídias de quem não há escudo que te possa proteger. Esquece-te de Angélica! Volta! (CALVINO, p. 48)
Mas a loucura do amor já estava instalada. Ele não entende que aquele bosque não era o bosque do seu amor, que ele não pertencia ali. Ao invés disso, ele olhou para o nome “Medoro” nas árvores e pensou que, na realidade, Angélica havia querido escrever “Orlando”. Este é o momento (motivo de um texto por si próprio) que, curiosamente, Deus tira o cérebro de Orlando e o coloca na Lua, e assim o cavaleiro enlouquece.
quel ch’era Orlando è morto et è sotterra;
la sua donna ingratissima l’ha ucciso.
Aquele que era Orlando está morto e enterrado
A sua ingrata mulher o assassinou
Então existe a outra face do Cavaleiro de Copas: como eu disse, tudo, em Copas, é vivido de forma sentimental. O drama, a performance, o exagero. O sofrer pelo amor se torna a nova paixão. Nesse sentido, ninguém foi mais intenso que a poeta Gaspara Stampa (1523-54), que, sofrendo por um homem que vivia um caso com elas em jamais pedir sua mão, escreveu inúmeras obras sobre o seu sofrimento, de forma que a dor se tornou sua paixão.
Se ’l cibo, onde i suoi servi nutre Amore,
è ’l dolore e ’l martìre,
come poss’io morire
nodrita dal dolore?
Il semplicetto pesce,
che solo ne l’umor vive e respira,
in un momento spira
tosto che de l’acqua esce;
e l’animal, che vive in fiamma e ’n foco,
muor come cangia loco.
Or, se tu vòi ch’io moia,
Amor, trammi di guai e pommi in gioia;
perché col pianto, mio cibo vitale,
tu non mi puoi far male.
Se o prato que aos seus servos nutre Amor
é de dor e sofrer,
como posso eu morrer
nutrida pela dor?
O peixe mais vulgar,
que vive dentro d’água e ali respira,
num só instante expira
se sair do seu lar;
e o animal que vive em flama e brasa,
morre ao trocar de casa.
Se tu queres que eu morra,
Amor, dá gozo e tira-me a modorra;
porque com o pranto, o meu prato vital,
tu não me fazes mal.
(trad. Guilherme Gontijo Flores)
Orlando, como Cavaleiro de Copas, é a melhor figura, na minha visão, para representar uma carta isolada, sem as relações com outras. Nele, vemos o melhor lado do Cavaleiro de Copas – a verdade, o coração pulsante, a paixão pura, que é de uma beleza rara; mas também encontramos a perdição do amor, a loucura e a dor. Como sabemos, quando falamos em tarô, é o jogo, o contexto, o baralho, a pergunta e todos os outros fatores que nos dirão que tipo de Cavaleiro de Copas é o que está em nossa frente, mas num geral eu gosto de pensar na totalidade desse arcano.
[1] Matéria de França ou Ciclo Carolíngio é o nome que se dá às aventuras de Carlo Magno nas canções de gesta - diferente da Matéria de Bretanha ou Ciclo Arturiano, que conta as histórias do rei Artur e a Távola Redonda.
[2] cada letra representa uma rima diferente, de forma que o primeiro, o terceiro e o quinto versos têm uma rima, já o segundo, o quarto e o sexto outra, e os dois últimos ainda outra.
[3] tradução livre
Bibliografia consultada:
AUERBACH, E. A Saída do Cavaleiro Cortês. In: Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 1971
____. Orlando furioso di Ludovico Ariosto raccontato da Italo Calvino. Milano: Mondadori Editore S.p.A, 2020
____. O Castelo dos destinos cruzados. Tradução: Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
CURTIUS, Ernst Robert. Literatura Europeia e Idade Média Latina. Tradução: Teodoro Cabral e Paulo Rónai. São Paulo: edotpra da Universidade de São Paulo, 2013.
HUIZINGA, Johan. O outono da idade média. Tradução: Francis Petra Janssen. 1ª ed. São Paulo: Penguin-Companhia das Letras, 2021.
KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. Tradução: Teresa Bulhões Carvalho de Fonseca. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval. Tradução: Antônio José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70.
SPINA, Segismundo. A cultura literária medieval. 3.ed. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2007.
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