O Tarô e o Espaço ou reflexões sobre uma aula
[texto de março de 2019]
Acabo de sair da aula. Estou tendo uma disciplina chamada Estudos Portugueses (para quem não me conhece bem, faço Bacharel em Letras - Tradução do Italiano), e, hoje, discutimos um texto chamado "O Espaço na Teoria da Literatura", primeiro capítulo do livro "Teorias do Espaço Literário", de Luís Alberto Brandão. O texto discorre sobre a importância do espaço na literatura, e a aula foi justamente sobre como tal fator é determinante nas obras da Literatura Portuguesa. Grandes viagens, descrições de lugares. Porém, como toda boa aula, o assunto alargou-se à vida cotidiana. A arte, e, em especial, a Literatura, tem esse poder de alimentar os símbolos, de nutrir a vida. Disse Alberto Cousté que tudo é oráculo. Tudo é livro. Tudo pode ser lido. Logo, tudo é oráculo. As estrelas, o voo dos pássaros, o o crescimento das plantas, as vísceras de animais mortos. Somos adivinhos desde sempre - ou, melhor dizendo, somos tradutores desde sempre. Em tudo procuramos sentido. Há sempre uma busca de uma razão, de um porquê. No capítulo 1 de seu livro, "O Tarô ou a Máquina de Imaginar", Alberto Cousté discorre: "É possível supor que o universo todo simula uma interminável proposta adivinhatória: as águas e os vales, o raio e as estrelas, os monumentos e os objetos cotidianos estão esperando serem lidos pelo homem, aguardam o olhar que os integre a uma sintaxe, que se volte harmônica e relacionada à solidão substantiva, o fenômeno primordial. Nessa pressuposição antropocêntrica descansam as tentativas limites do homem como nomeador: a poesia, a magia, a adivinhação. Se em primeiro lugar identifica os nomes, suprime o caos e organiza o mundo, em segundo estabelece os primeiros pactos com as coisas descobertas, investiga a afinidade e as separações, surpreende a simpatia entre as formas recém-nascidas do seu reino. O terceiro passo é consequência lógica dos dois anteriores: uma tensão sobre o comportamento da realidade; a intenção de estabelecer seguranças ante o futuro da conquista, suscetível de ser aniquilada pelo que não ocorreu mas pode ocorrer em algum ponto do tempo e do espaço".
É interessante pensar que mesmo dentro de um livro de tarô podemos perceber essa teoria a respeito do espaço. O espaço passa por um processo de identificação, de padronização. É desse processo categórico que surgem os mapas, os poemas, os oráculos. Nós somos um ser nomeador. O Espaço. Lugar. Quanta coisa cabe dentro desse substantivo? "O corpo é o primeiro espaço do homem", disse a professora. Imediatamente minha cabeça foi para a figura do Pendurado. Ninguém conhece melhor o próprio corpo que o arcano 12. Pendurado, impossibilitado, ele não pode fazer nada além de verificar a própria situação. Perceber a dor causada pelas amarras. Os limites impostos a ele. Tempo de suspensão, conforme diz Leonardo Chioda no belíssimo "A Anatomia do Pendurado". Ao mesmo tempo, há uma perna livre: dentro das limitações, há uma possibilidade. Ele não pode ter o reino, os seus objetivos conquistados, o poder de ação; mas ele pode movimentar aquela perna! Que alegria! Diante de tanto lodo, uma pepita de ouro: saber que pode movimentar a própria perna. Conhece os próprios limites como ninguém, e, por isso, sabe do próprio espaço. A primeira referência humana é o próprio corpo. A gente sabe quem é sabendo onde estamos. É no espaço que criamos identidade. Daí os nacionalismos, os localismos, as identidades de massa. O próprio tempo é marcado pelo espaço: nós o medimos com figuras espaciais. O movimento da sombra em um relógio do sol, um ponteiro que se distancia de pontos de referência.
Ainda pensando no Pendurado, lembro de uma história contada pela professora. Ela narrou o dia em que uma sua aluna portuguesa lhe disse: "acho que entendi, professora. Ser portuguesa é não ser espanhola ". A frase, que causou riso, revela um significado profundo. Dentro da lógica do Pendurado, sabemos aquilo que podemos somente diante da impossibilidade. A consciência da própria perna livre, e, logo, do próprio corpo, se dá somente através das amarras. Somente pela dor que sabemos o que é o prazer. Só podemos presenciar a doçura do beijo depois da amargura da lágrima. Somos marcados pelo caminho do Beijo e do Chicote, me disse um amigo uma vez. Um dos conselhos do Pendurado fala justamente da mudança de perspectiva. Da renúncia, da aceitação dos limites. Ou seja, da percepção do espaço. É interessante, neste sentido, voltar ao texto teórico de Brandão, que diz: "Um breve exame da história da cartografia é suficiente para demonstrar que as formas de representação espacial variam de acordo com a relação que cada época e cada cultura possuem com o espaço, relação que abarca possibilidades de percepção e uso, definidas por condicionantes econômicos, sociais e políticos. Assim é que os mapas medievais, em decorrência do relativo isolamento dos espaços feudais europeus, acentuam as qualidades sensoriais e simbólicas da ordem espacial - mas não as objetivas e práticas, visadas pelos mapas renascentistas, que refletem o desejo de conquista e domínio dos espaços" (BRANDÃO, 1964, p. 18)
Fincar a bandeira para definir quem sou. Tudo é a relação entre a coisa e o nosso olhar sobre ela. Assim como os mapas, as cartas também falam de percepções de poder. O espaço fala sobre dominação. É comum, em literaturas de viagem, encontrarmos trechos em que o descobridor precisa cruzar matas densas, selvagens. Em cenários "civilizados", as florestas parecem jardins. Eis a metáfora do homem "conquistador" sobre o outro, é a conclusão de uma das falas discutidas a respeito deste trecho. Neste ponto, penso no Carro e no Imperador. O conquistador em sua Grande Viagem, como narrado n'Os Lusíadas. E há o Imperador, que fixa sua bandeira. É a concretização máxima do espaço como poder. O Espaço agora tem limites, fronteiras, símbolos que o identificam como propriedade de algo. Ganha, neste sentido, uma identidade, ainda que imposta. Como disse meu colega Gilmar, a primeira coisa que os Estados Unidos fizeram, quando pisaram na Lua, foi colocar uma bandeira. É como se o homem se definisse pelo território, e como se este definisse-o. Brandão diz, sobre a natureza identitária do espaço: "Mediante o enfoque nas identidades, que se definem na interação de subjetividades individuais, e referências coletivas, o tratamento do espaço não prevê que se dissocie de sua materialidade uma dimensão intensamente simbólica. Stuart Hall afirma: 'Todas as identidades estão localizadas no espaço e no tempo simbólicos'. O 'espaço da identidade', sem dúvida, é marcado não apenas por convergências de interesses, comunhão de valores e ações conjugadas, mas também por divergência, isolamento, conflito e embate. Se, como o espaço, toda identidade é relacional, pois só a define na interface com a alteridade, seu principal predicado é intrinsecamente político (BRANDÃO, 1964, p. 31)
Se o Imperador, então, é este homem-territorializado, o que seria o Louco? Viajante sem propósito. Sem destino. O Louco não porta brasões ou bandeiras. É o homem não-heráldico. Diferente do Pendurado, é totalmente não-ciente de si. Por isso mesmo deixa a coxa, símbolo da fraqueza humana, assim como de todos os seus pudores e vergonhas, à mostra. Ele não se importa com as regras, pois as regras pertencem a um território. E talvez seja por isso mesmo que o Louco não tenha identidade ou, mesmo, extrapolando o limite da imaginação, não seja numerado.
As cidades falam - assim como as cartas As cidades nos agridem É impossível falar de espaço no século XXI sem tocar no assunto cidades. Sobre isso, Brandão diz que temos uma tentativa de organizar as coisas simbolicamente, através de noções espaciais. Muito parecido, inclusive, com a "sintaxe simbólica" proposta por Cousté. De acordo com Brandão, "no pensamento urbanístico é bastante recorrente a suposição de que as cidades se configuram segunda uma língua" (BRANDÃO, 1964, p. 36). E aí eu não consigo calar a boca e, como sempre, falo de Italo Calvino. O escritor italo-cubano é o meu autor favorito, e já estou ficando conhecido na faculdade por fazer praticamente todos os meus trabalhos finais das disciplinas sobre ele (ou sobre o tarô, ahahaha). Calvino escreveu um livro chamado "As Cidades Invisíveis", o meu favorito. Acompanhamos Marco Polo, que descreve o império de Kublai Khan ao longo de 55 minicontos, cada um descrevendo uma cidade. Elas são dividas em categorias como "as cidades e os mortos", "as cidades e os símbolos", "as cidades e a memória". Para o próprio Calvino, este é o seu livro mais complexo, pois concentrou em um único símbolo (a cidade), todas as suas experiências, reflexões e conjeturas. Não é a cidade o maior símbolo de território deste século? Não é nela que depositamos uma gama de significados? Basta ver os adjetivos que costumam acompanhá-las. Nova Iorque é a cidade dos sonhos; Paris é a cidade-luz; Roma, a eterna; Rio, a cidade maravilhosa. Marco Polo, na narrativa, diz: " é importante não confundir a cidade com o discurso que a descreve ". Nessa frase há, em minha opinião, uma crítica fundamental ao espaço. A lista de adjetivos pode limitar essa coisa "amorfa e caprichosa", que é a cidade, segundo Calvino. Mas ainda, no mesmo livro, ele diz: "É o humor de que a olha que dá forma à cidade". As cidades são construções do olhar. Para Calvino, uma cidade deve ser utilizada seja para "nos dar uma resposta às nossas perguntas" que para dar atenção "às perguntas que nos colocamos para nos obrigar a responder", também é importante lembrar que "não há linguagem sem engano".
Uma das cidades de Calvino possui uma das melhores frases de todo o livro, é aquela de Zenóbia, que dá duas interpretações novas às cidades: "aquelas que continuam ao longo dos anos e das mutações a dar forma aos desejos e aquelas em que os desejos conseguem cancelar a cidade ou são por ela cancelados" (CALVINO, 1990, p. 37). Neste momento, uma colega, em seu discurso (não lembro o seu nome, acredito que seja Janete), falou a frase que mais nos marcou: a cidade nos agride. Muito parecida com a frase de Calvino, a de Janete: "a mentira não está no discurso, mas nas coisas". Praticamente toda cidade tem um discurso de acolhimento, de segurança, de comunidade. Mas isso é verdade? Quem mora em Porto Alegre está acostumado com a música "Porto Alegre é Demais", que, como uma verdadeira oração helênica, coloca o discurso do bairrismo a um nível melódico, elogiando todas as características da cidade. Mas quem mora aqui, conhece bem a realidade. Assaltos, falta de investimento, de infraestrutura, de eventos com valor comunitário, a lista de problemas é longa. E acredito que seja assim em diversos lugares. Basta pensarmos ao fato de que somos obrigados a, muitas vezes, andarmos em zigue-zague para atravessarmos uma rua, apenas para a comodidade dos carros. O discurso da cidade é político. Ele fala, mas a quem? A cidade nos agride.
Ainda lembrando do Louco, que em muito parece um morador de rua, em algum momento da discussão, lembramos da questão dos chamados "bancos antimendigos". Cada vez mais, vemos praças sendo cercadas, bancos onde não é possível deitar. A cidade está literalmente empurrando a poeira para baixo do tapete, marginalizando a situação. É a Torre caindo, talvez sob o jugo de um Imperador que mais parece com o Diabo. A aula chega ao fim. E eu, e com certeza meus colegas, saímos cheios de pensamentos na cabeça. Qual a nossa relação com o espaço onde estamos? O que a nossa cidade nos diz? Se a nossa cidade fosse um Arcano, qual seria a leitura que faríamos? Acredito que seja pertinente terminar esse texto com um trecho de Calvino, que sempre diz o que precisa ser dito da forma mais deliciosa possível.
Caminha-se por vários dias entre árvores e pedras. Raramente o olhar se fixa numa coisa, e, quando isso acontece, ela é reconhecida pelo símbolo de alguma outra coisa: a pegada na areia indica a passagem de um tigre; o pântano anuncia uma veia de água; a flor do hibisco, o fim do inverno. O resto é mudo e intercambiável — árvores e pedras são apenas aquilo que são. Finalmente, a viagem conduz à cidade de Tamara. Penetra-se por ruas cheias de placas que pendem das paredes. Os olhos não veem coisas mas figuras de coisas que significam outras coisas: o torquês indica a casa do tira-dentes; o jarro, a taberna; as alabardas, o corpo de guarda; a balança, a quitanda. Estátuas e escudos reproduzem imagens de leões delfins torres estrelas: símbolo de que alguma coisa — sabe-se lá o quê — tem como símbolo um leão ou delfim ou torre ou estrela. Outros símbolos advertem aquilo que é proibido em algum lugar — entrar na viela com carroças, urinar atrás do quiosque, pescar com vara na ponte — e aquilo que é permitido — dar de beber às zebras, jogar bocha, incinerar o cadáver dos parentes. Na porta dos templos, veem-se as estátuas dos deuses, cada qual representado com seus atributos: a cornucópia, a ampulheta, a medusa, pelos quais os fiéis podem reconhecê-los e dirigir-lhes a oração adequada. Se um edifício não contém nenhuma insígnia ou figura, a sua forma e o lugar que ocupa na organização da cidade bastam para indicar a sua função: o palácio real, a prisão, a casa da moeda, a escola pitagórica, o bordel. Mesmo as mercadorias que os vendedores expõem em suas bancas valem não por si próprias mas como símbolos de outras coisas: a tira bordada para a testa significa elegância; a liteira dourada, poder; os volumes de Averróis, sabedoria; a pulseira para o tornozelo, voluptuosidade. O olhar percorre as ruas como se fossem páginas escritas: a cidade diz tudo o que você deve pensar, faz você repetir o discurso, e, enquanto você acredita estar visitando Tamara, não faz nada além de registrar os nomes com os quais ela define a si própria e todas as suas partes. Como é realmente a cidade sob esse carregado invólucro de símbolos, o que contém e o que esconde, ao se sair de Tamara é impossível saber. Do lado de fora, a terra estende-se vazia até o horizonte, abre-se o céu onde correm as nuvens. Nas formas que o acaso e o vento dão às nuvens, o homem se propõe a reconhecer figuras: veleiro, mão, elefante...
Julio Soares