"O Tarô de Marselha Revelado", de Yoav Ben-Dov
Tarô de Marselha é o baralho que mais manteve seu padrão o mais perto possível do intacto. Suas imagens, a ordem de suas cartas e formas de produção pouco mudaram desde que Jean Noblet, mestre cartier parisiense, lançou o baralho que viria a ser conhecido como o primeiro tarô de Marselha do mundo, em 1650.
Apesar de milhares de novos baralhos e propostas surgirem ano após ano, o padrão Marselhês ainda é o esqueleto para todo mundo que quer aprender (bem) a leitura de cartas. O tarô de Marselha, com poucas exceções, ainda consegue se manter intacto diante de uma produção em massa que cria novos baralhos somente para seguir discursos da moda, como séries e filmes. É justamente a simplicidade que faz com o que este baralho seja tão perfeito. Falo em simplicidade para evitar outra palavra muito associada ao tarô de Marselha: pureza. Quando estudamos o tarô de Marselha, entendemos que o que ele não tem é pureza. Em suas lâminas, vemos a marca da época de sua produção, vemos os erros de impressão e as visões sobre a realidade, vemos as condições financeiras e políticas de quem produzia o baralho, vemos o estado do mundo. É justamente isso que dá ao tarô de Marselha um gosto verdadeiro, autêntico como em nenhum outro baralho.
Por isso, quando alguém se propõe a discutir e pensar o tarô de Marselha, isso deve ser celebrado. O livro de Yoav Ben-Dov, “O Tarô de Marselha Revelado”, publicado pela Editora Pensamento, é uma gema que deve estar nas prateleiras de qualquer pessoa interessada em tarô.
Ben-Dov era professor de Filosofia da Ciência em Tel Aviv, Israel, e teve, como professor de tarô, Alejandro Jodorowsky. Acho importante, antes de continuar com a resenha, atentar para este fato. Ben-Dov é, por extensão, um nome que carrega um legado cartomântico que tem por raízes autorias como Tchalaï Unger e Paul Marteau, que foram professores de Jodorowsky. A visão sobre o tarô destes autores, muitas vezes, especialmente no caso de Jodorowsky e Paul Marteau, acaba extrapolando limites de uma própria lógica interna, o que faz com que eu não me associe com essas abordagens (para saber mais, você pode ler minha resenha do livro de Jodorowsky e Marianne Costa clicando aqui).
A partir destes ensinamentos, Ben-Dov desenvolve seu pensamento sobre aquilo que vai chamar de “leitura aberta”, que é algo muito parecido com a chamada linguagem dos pássaros, que conta com nomes como Jodorowsky, Marianne Costa, Camelia Elias e Enrique Enriquez. Estas maneiras de enxergar o tarô propõem um determinado esquecimento dos significados-base das cartas.
O que eu gosto, porém, é que o autor, aqui, mostra uma prudência e consciência sobre o próprio pensamento que é venerável. Por mais fiel ao próprio método que Ben-Dov seja, dificilmente ele extrapola em sua leitura aberta. Ele mostra estar atento a cada palavra que usa, e, diferente de seu mestre, não entra em contradição consigo em sua obra. Inclusive, na minha opinião, para quem quer se aventurar pela leitura aberta e, posteriormente, na linguagem dos pássaros, começar por Ben-Dov é um caminho muito razoável. Isso não quer dizer que eu não tenha minhas críticas ao método, é claro, mas mostra que, pelo menos, o autor é coerente consigo, o que é algo que eu valorizo muito.
No começo da obra, o autor fala, principalmente, sobre os processos históricos que o levaram até à criação do CBD Tarot de Marseille. Este baralho é uma criação baseada no baralho de Nicolas Conver, de 1760, que ganhou muita força por ser o primeiro baralho a ganhar voz comercial a partir do nome “tarô de Marselha”, especialmente graças ao trabalho da editora Grimmaud, na França. Geralmente, quando pensamos no tarô de Marselha, pensamos no Conver.
Além disso, Ben-Dov fala sobre a história do tarô, de maneira rápida e, na minha opinião, um tanto quanto superficial. Se, por um lado, entendo que a sua proposta não é uma proposta histórica; por outro, tenho determinado incômodo com o uso de coisas que são consideradas “lacunas” (mesmo quando já sabemos que não são) na história do tarô para inserir um tom mais esotérico a partir delas. Logo, tudo que é misterioso ou vazio de uma resposta pronta dá espaço para algumas teorias um tanto quanto tolas. Claro, me agrada muito que Ben-Dov não cai em mitos já batidos como o tarô egípcio, mas alguns detalhes ainda me são estranhos. Nada que impeça uma boa leitura, é claro.
Quando explica a Escola Inglesa e a Escola Francesa, Ben-Dov é extremamente sucinto, sendo uma das minhas partes favoritas em seu livro.
A escrita de Ben-Dov é extremamente clara e didática, e, quando ele reserva espaço do livro para falar, de maneira separada, sobre, a dinâmica da leitura de cartas; sobre o processo de leitura em si e, por fim, sobre a linguagem simbólica, temos este texto entregue de maneira a ser facilmente digerido. Novamente, eu não concordo com todas as coisas, mas respeito a sua clareza diante da abordagem. Sobre os Arcanos Maiores e Menores, Ben-Dov possui insights extremamente úteis e preciosos. O autor se afilia de uma maneira bastante clara a um pensamento de escola francesa, e o faz sem repetir os discursos cansativos já clássicos em livros anteriores ao seu. Ler seu pensamento é muito refrescante.
Outra coisa extremamente valiosa aqui é o uso extenso de exemplos de tiragens. Esse tipo de linguagem ajuda muito quem está estudando as cartas a se situar não somente nos significados delas, mas também no processo de significação que Ben-Dov utiliza.
O Tarô de Marselha Revelado é livro que mostra toda o poder e potência deste autor que, infelizmente, nos deixou cedo demais. Um clássico que deve ser lido e relido.
Lembrando que está acontecendo um sorteio de um exemplar do livro, em parceria com a Editora Pensamento, no meu instagram @fortunaarcana
Julio Soares