Atenção: este texto contém spoilers sobre o filme “O Conclave”. Não guardarei segredos: conto o final e tudo que fizer parte do meu fluxo de pensamento. Também não sou muito paciente com quem é muito sensível com spoilers, faz parte da minha profissão contar os spoilers da vida das pessoas, afinal, rs. Então, fica o aviso. Leia o texto após ver o filme ou caso você não se importe com spoilers.
Para simplificar, usarei ‘Papa’ para identificar a carta do tarô, e ‘papa’ para identificar a figura religiosa.
No segundo capítulo de seu livro Le Tarot des Imagiers du Moyen Âge (publicado no Brasil como O Tarô dos Magistas), Wirth dedica sua atenção a comentar os índices reveladores dos segredos do tarô. Isto é o que futuramente será chamado de Teoria Binária, tão cara a mim, e que inclusive fundamenta boa parte da estrutura do meu livro Tarô: Arqueologia do Símbolo, que logo estará nas prateleiras de muitos de vocês.
Dentro da teoria binária, fazemos relações entre duas e quatro cartas. Nela, quatro cartas formam uma tétrade que muito me intriga e impressiona: O Papa, o Carro, a Torre e a Lua. Pois bem, com essas informações, sigamos ao filme.
Conclave é o nome dado à votação secreta que ocorre após a morte ou renúncia de um papa. Será função do Decano, um cardeal que administra outros cardeais, presidir o conclave. Esta é a premissa do filme de Edward Berger.
O protagonista é o Decano Thomas Lawrence, que ocupa o papel mais importante do Conclave ao mesmo tempo em que passa por uma crise de fé. Não apenas isso: já poucos minutos após o ritual de retirada do Anel do Pescador, um dos principais símbolos papais, o Decano começa a perceber e, acima de tudo, a suspeitar de uma série de eventos no mínimo confusos a respeito dos últimos momentos em vida do papa.
Acima de tudo, a carta do Papa é um lembrete da função que ocupamos em nossa vida. Aquilo pelo que somos reconhecidos, a série de leis que seguimos e que proclamamos. Na teoria binária, o Papa ocupa uma posição oposta à Lua: enquanto esta representa as 'aparências sensíveis, a ilusão dos sentidos', cabe ao Papa observar os movimentos fantasiosos do luminar noturno e organizá-los. A relação entre essas duas cartas é, para Wirth, a “elaboração de uma síntese”. Esse é um dos temas do filme: o Decano precisa, afinal de contas, esclarecer todo subterfúgio lunar (as mentiras, as fantasias, os segredos) para fazer bem sua função. E o terreno lunar de O Conclave está cheio de sombras novas: é preciso lembrar que tanto a figura do Papa do tarô quanto da Igreja são, também, líderes políticos. E o próprio conclave é, afinal, uma eleição. Não menos humanos que nós, os cardeais também estão sujeitos aos próprios ideais políticos e sociais. Logo fica claro que as forças opostas estão entre os liberais (representados pelo próprio Decano, afinal ele também é um cardeal, logo, também é elegível a papa) e os conservadores (cuja principal figura é o cardeal Tedesco, um italiano racista que se opunha ao antigo papa com todas as forças). Além da oposição clara, diversos problemas surgem ao longo do processo: no mundo do quinto arcano e da Igreja, ter uma boa reputação é a ordem máxima. Nesse processo, ou melhor, nessa guerra silenciosa, as bestas lunares não demoram a mostrar suas garras: casos de corrupção, escândalos sexuais e, é claro, um dos pontos mais importantes do filme — a chegada de um cardeal novo, até então desconhecido, o cardeal Vincent Benitez, de Cabul, que foi oficializado como cardeal pelo próprio papa em segredo.
É durante a homília (leitura pública de alguma Escritura, juntamente com alguns comentários) do Decano que aparecem uma das melhores relações entre o Papa e a Lua: reconhecer a escuridão. A homília segue mais ou menos assim:
“Ao longo de muitos anos a serviço de nossa mãe, a Igreja, deixe-me dizer: há um pecado que eu temo acima de todos os outros: a certeza. As certezas são as grandes inimigas da união. A certeza é a inimiga mortal da tolerância; nem mesmo Cristo tinha certeza no fim de sua vida: Dio mio, Dio mio, perché mi hai abbandonato? Ele chorou em agonia na nona hora na cruz. Nossa fé é uma coisa viva justamente porque caminha de mãos dadas com a dúvida. Se houvesse apenas certeza e nenhuma dúvida, não haveria mistério e, logo, não haveria necessidade de fé. Vamos rezar para que Deus nos dê um Papa que duvide, que Ele nos dê um Papa que peque e peça perdão e que siga em frente.”
Afinal, se o Papa é também a figura dos professores, dos sacerdotes, dos pesquisadores e de todos que servem ao esclarecimento, a dúvida deverá ser sempre sua bússola, não? De que adiantam as certezas sem as perguntas que as originam? É, como diz o Decano, a dúvida que cria o mistério, tão importante para que haja crença em algo além de nós. E, afinal, o Papa é a carta que melhor sabe lidar com a dúvida: basta observar a ordem dos arcanos maiores. O Papa surge logo após o Imperador, este sim, símbolo das certezas do mundo, dos limites concretos e inegociáveis; para então ir ao encontro com os Enamorados, com a necessidade de fazer escolhas e com o lembrete a respeito da escolha justa (se você ainda não leu, não deixe de ler meu texto sobre os Enamorados e a sua relação com o Diabo).
Além disso, a Lua, que se opõe ao Papa pela teoria binária, também indica um fator importante: para que possamos esclarecer as coisas, o contato com as sombras deve ser constante. E uma sombra não demorou a se tornar cada vez mais presente durante o conclave: a ambição dos cardeais, inclusive a do próprio Decano. Dentro da teoria binária, o Papa possui uma relação intrínseca com a carta do Carro. Para Wirth, “a doutrina transcendente e abstrata que o Papa (5) proclama do alto de seu trono imóvel é aplicada pelo Triunfador do Carro (7), que percorre o mundo sobre um trono móvel. Por toda parte, esse ministro inteligente adapta o ideal às necessidades práticas. Ele está em combate com a realidade brutal, e a transforma pela conciliação dos contrários: espírito e matéria, egoísmo e altruísmo. É um árbitro, um pacificador, um sábio que reina pelo seu saber e sua autoridade moral.”
Para a teoria binária, o Carro é quem vive os ensinamentos do Papa, servindo logo como um modelo, como exemplo das coisas proclamadas pelo quinto arcano. Existe, no entanto, o risco trazido por ele: a ambição, “traça da santidade”, como bem dito no filme. O conclave também é um terreno bélico, e o Carro é o guerreiro por excelência. Não demora muito para que a ambição passe a movimentar os personagens. A estratégia inicial do grupo de cardeais liberais, ideia muito reforçada pelo próprio Decano, é de centralizar os votos liberais no Cardeal Bellini, um dos personagens mais importantes para a história. No entanto, como é típico, os votos se dividem entre vários cardeais liberais, e o próprio Decano recebe um voto, do Cardeal Benitez.
Uma das cenas mais marcantes é quando, pela primeira vez, o Decano abraça a própria ambição e vota em si mesmo. Enquanto isso ocorre, uma bomba explode perto do Vaticano, e as janelas da Capela Sistina, onde ocorre a votação, explodem. Afinal, o Carro se opõe à carta da Torre na teoria binária. Em um mundo de equivalências, uma explosão parece ser adequada para representar o fervor de egos e mesquinhez representado pelas brigas no Conclave.
Mas, é claro, o ponto principal não é apenas esta ambição, mas o exemplo: o cardeal Benitez deixa claro que seu voto no Cardenal é porque ele vê nele alguém digno do papado. Ele é o lembrete de que os papas e cardeais “servem a um ideal, mas não podem sempre ser um ideal”. De fato, o Cardenal é um exemplo típico da relação Papa-Lua-Carro, em que sua ambição está focada em cumprir o seu papel como administrador do conclave, e faz o que julga necessário para esclarecer todos os pontos obscuros da Lua, a ponto de ele mesmo quebrar um dos votos mais importantes da ritualística envolvendo o conclave: quebra os selos que dão acesso aos aposentos do papa, selos que ele mesmo tinha a função de guardar, para descobrir as intrigas e segredos que ainda não foram revelados. Todos esses atos fazem dele um exemplo, ao estilo do Carro, alguém que age de acordo com a moral que segue, tendo o entendimento claro de pagar o preço por ser quem é, pela própria ambição, entendendo que a virtude pode ser tão pesada quanto a falha.
Após a explosão, o cardeal Benitez faz um discurso durante uma discussão entre os cardeais liberais e os conservadores. Nele, expõe as vaidades de ambos os lados e isso, é claro, faz com que ele ganhe votos, vencendo a eleição. Então, torna-se o papa Inocêncio. No entanto, é claro, o Papa está sempre em contato com a Lua: ele também tem seus segredos. Uma hora antes da anunciação do novo papa, o Decano o confronta a respeito da ida, em segredo, do então cardeal Benitez a uma clínica na Suíça.
É revelado, então, que o papa Inocêncio é uma pessoa intersexo. Nem mesmo ele sabia, por boa parte de sua vida, que tinha útero e ovários. Em seu diálogo com o Decano, o papa Inocêncio comenta sobre como havia pensado em fazer uma cirurgia para “remover suas partes femininas, mas pareceu-me mais um pecado mudar sua obra do que deixar meu corpo como estava. (...) Eu sou o que Deus me fez, e talvez essa seja a minha diferença que me tornaria útil. Penso novamente na sua homília: eu sei o que é existir entre as certezas do mundo.”
Existir entre as certezas do mundo, eis o Papa. Ocupar um lugar de ponte, psicopompo entre a dúvida e a certeza. O novo papado de Inocêncio deixa um recado a respeito de abraças as próprias dúvidas e crises, aceitando o fardo de organizá-las e de estar em eterno equilíbrio para que a ambição seja o suficiente para nos dar coragem para quebrar ciclos já ultrapassados, mas que também não seja exagerada a ponto de nos desviar de quem somos.
Enfim, recomendo muito o filme, e ele me fez pensar muito nessa tétrade de Wirth.
O segundo capítulo do livro de Wirth pode ser lido no Clube do Tarô, traduzido pelo Constantino K. Riemma: http://www.clubedotaro.com.br/site/m33_ow_indicios.asp
Um espetáculo sua articulação professor 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼 gostei demais do filme também
Estou muito ansiosa pra receber seu livro!