Atenção: este texto contém leves spoilers dos quadrinhos e da série Heartstopper. Cartomancia é dar spoiler da vida dos outros, então não vou fazer a linha discreta em um texto do tipo, tá?
Fui vencido pela trend. Não pude escapar de mais uma série sobre a qual todos comentam, e que, em questão de dias, virou uma febre enorme no mundo inteiro. O que eu não esperava, porém, é que um roteiro tão simples e, em diversos aspectos, clichê, pudesse ser tão tocante.
Aviso: como ler a Corte
Não é porque as figuras da Corte estão sendo usadas para indicar personagens e comportamentos, que podemos reduzir tais figuras a personagens e pessoas sem qualquer cuidado. Estou usando a obra para falar de aspectos dos Pajens, mas isso não quer dizer que os pajens são somente o que escrevo, e muito menos que os personagens da obra são somente os pajens aqui descritos. Repetir um discurso do tipo é, em primeiro lugar, preconceituoso. Não saiam imaginando que o Pajem de Copas é o personagem gay de todas as séries. Além de demonstrar uma visão preconceituosa, esse tipo de leitura é vazia, e mostra pouca intimidade com o tarô.
Heartstopper é uma série de quadrinhos da ilustradora e escritora Alice Oseman. Publicado pela primeira vez em 2018, através de financiamento coletivo, os quadrinhos se tornaram populares a ponto de ganharem uma adaptação para a Netflix em 2022.
A história de Hearstopper gira ao redor dos personagens Charlie Spring e Nick Nelson, dois adolescentes de 14 e 16 anos, respectivamente. Ambos os personagens fazem sua primeira aparição no livro Um ano solitário, o primeiro livro de Oseman. A própria autora fala a respeito disso: “Charlie é o irmão caçula de Tori, a protagonista, e Nick é o namorado amoroso e super protetor dele. Eles não têm muito espaço na narrativa, mas no livro, aos 17 e 15 anos, eles estão em um relacionamento firme, carinhoso e acolhedor. Foi aí que meu desejo de contar a história deles começou.”
Ouvi falar dessa série, pela primeira vez, no Twitter, onde havia uma discussão acalorada sobre o fator chamado de fantástico no enredo: tudo era leve demais. Me interessei, fui ver a série, me apaixonei completamente, comprei todos os quadrinhos, virei fã - até pra terapia levei o assunto.
Sim, eu entendo o quão fantasioso Heartstopper pode ser. Eu ainda sou de uma geração - e de uma origem geográfica, podemos dizer - em que um adolescente gay simplesmente não pode viver a sua verdade. Em muitos casos, as únicas opções são o armário ou a expulsão de casa; o armário ou a exclusão; o armário ou a morte. Diante disso, o Pajem de Copas, personagem principal de meu pensamento, acaba se obrigando a virar tantas outras figuras da corte: o Pajem de Espadas, por exemplo. Nos tornamos, diante da supressão de nosso lado sensível e emocional, falsos, um tanto quanto rebeldes, invejosos. Com um machucado que não pode ser exposto e, logo, processado, nos afastamos dos outros, inflamando mais nossas dores. O adolescente Pajem de Espadas se coloca em uma posição de defensiva quando ainda não possui as habilidades para se por em tal posição. Lhe sobra, então, a pose, o rosnar dos dentes.
Ben, uma das “relações” de Charlie, expressa o pior do Pajem de Espadas. Diante da inabilidade em lidar com as próprias questões sentimentais - tal como podemos esperar de adolescentes, e eu acho importante que lembremos o tempo inteiro que estamos falando de adolescentes em toda a obra -, se torna manipulador, frio.
Há, ainda, situações em que este Pajem de Copas reprimido se torna o Pajem de Ouros. Dessa maneira, é a “criança adulta”. De todas as coisas que eu mais ouvia na infância, a que mais imperava era que “o Julio não incomoda”. O Pajem de Ouros lida com tudo com extrema cautela, sendo, por um lado, muito confiável e sólido; mas, por outro, covarde e lento. Se torna uma espécie de “isentão”. Desvia de assuntos desconfortáveis com base na mesma ação sempre. “Por que tu não namora? Tu por acaso é viado?” A resposta para tal pergunta é sempre: “eu não me interesso por ninguém”. Se fazer de assexuado é a estratégia da vez kkkkkk
A solidão acaba se convertendo em uma pretensa falta de interesse. A vida torna-se rotina, e o Pajem de Ouros só fica no aguardo do momento em que poderá sair de casa e, de fato, começar a viver.
Mas, em Heartstopper, o Pajem de Copas se mostra em toda a sua beleza. As paixões adolescentes, repletas de borboletas no estômago, músicas de casais e convites para tomar milkshake - que, até então, foram negadas a adolescentes da comunidade LGBTQIA+, são o cenário perfeito para esse Pajem.
O naipe de copas é um naipe complicado. Muito se fala dele como o amor, mas, em copas, falamos, na realidade, das sensações. Da sensação do amor, da sensação do ódio, são os sentimentos e as nossas reações a eles que importa no naipe. Por causa disso, copas também fala das ilusões, dos venenos e das intoxicações. Muitos jogos que envolvem situações de vícios e até mesmo de manipulação e chantagem emocional são cheios de copas como testemunhas. Não sabemos lidar com os sentimentos, é impossível agarrar a água com as próprias mãos. Por isso as colocamos em taças, para dar forma e propósito para o que emana em nós.
No Pajem de Copas, porém, o sentimento ainda é puro, potencial. O amor do Pajem de Copas, como o amor de Charlie e Nick um pelo outro, é lindo porque é puro e inseguro. A angústia que é conseguir dizer “eu te amo”, o peso que é segurar as mãos de alguém. No pajem de copas, tudo tem a carga de uma pureza que é quase sagrada. O pajem anda com um pano acima da taça, pois sabe que seu conteúdo é precioso, e ele não quer fazer nenhuma besteira e acabar despejando tudo por aí.
Jovens LGBTQIA+ aprenderam a negar e até a temer o seu lado Pajem de Copas. Até mesmo na cartomancia isso tem seu reflexo. Em seu clássico “The Pictorial Key”, Arthur Edward Waite descreve o Pajem de Copas como “Um pajem agradável, atencioso, algo afeminado, de aspecto diligente”. Isso deu brecha pra diversas leituras dessa carta como homossexualidade, o que só reforça preconceitos. O Pajem de Copas é a melhor expressão do afeto, quando ela ainda não cobra e nem tem intenção de afogar ninguém. A taça do Pajem, diferente da taça da Rainha, por exemplo. não manipula e nem envenena. O Pajem vive o sentimento, com todo o amor e verdade que lhe cabe. Com toda a ingenuidade típica dos adolescentes, mas toda a sua potência também. Sem o Pajem, o Rei e a Rainha não existirão - tudo que começa no naipe passa pelo Pajem. Heartstopper mostra o melhor desse afeto.
Julio Soares
o quanto você me arrancou lágrimas com esse texto... de fato, não só a adolescência, mas até depois dela, o quanto é negado o afeto aos LGBTQIA+. obrigada por isso, Julio <3 (e me responde porque tem aparecido tanto pra mim esse pajenzinho nas minhas próprias tiragens... às vezes a gente esquece que não vamos ficar eternamente presos ao pajem de espadas)